quinta-feira, 10 de janeiro de 2013




Hoje a minha Tia Lolinha partiu aos 99 anos de idade.
Tinha mais que idade para partir, e a “razão” leva-me a escrever este texto com um sorriso nos lábios. Vidas e entregas assim preparam dignamente as partidas. A sua vida foi exemplar, pela intensidade com que se entregou genuinamente às pessoas que com ela se cruzaram. Pela sua dádiva de bondade pura, luminosa, única. Pelo seu enorme coração altruísta.

A Tia Lolinha vivia connosco cerca de um mês e meio por ano, 3 semanas no Verão e outras 3 no Inverno, para estar com a minha Avó, sua irmã mais nova. Nestas temporadas, eu pulava de alegria. Eram dias especiais. A Tia Lolinha contava me histórias todas as noites; dentro do rol de histórias que ela arquivava na memória, umas 15/20, perguntava-me sempre qual eu queria naquela noite. Eu lá escolhia, e estava ali a cem por cento, a absorver todas as palavras, todos os olhares, todas as pulsações. As mãos dela nas minhas, já na altura  muito engelhadas, com veias fundas que me intrigavam… e às vezes trauteávamos assim “Serubico manubico/quem te deu tamanho bico/ foi a velha chocalheira/que come ovos e manteiga/ Os meninos a correr as meninas a saltar /Qual será o que se vai esconder??….”  Uma vez, mais tarde, já eu era aluna de artes, ela estava em minha casa e desenhei a carvão as suas mãos …talvez por as ter desenhado e por tantas vezes ter dado as minhas mãos às dela, nunca  hei-de esquecê-las. Tenho-as na minha memória incrivelmente nítidas. Também desenhei o seu retrato…e ela chegou a dizer de sua justiça, pois também desenhou em jovem e idade adulta tão bons quadros a óleo e a pastel, e tocou tão boas melodias na chamada “quinta” que não conheci, cá no Porto, e no Bacêlo no Marco….A mim só já tocou escalas, pois muito lhe pedia para tocar e ela com um sorriso doce sentava-se ao piano e solfejava um Dó-ré-mi-fá-sol-lá-si e ia por li fora….passando por umas quantas escalas, rematando que já não se lembrava de quase nada.

Lembro me dos seus vestidos simples, ajustados por um cintinho que afirmava a sua cinta delgada … Lembro-me de em pequena lhe subir as saias, pois era malandreca e brincava com ela, e de ver uma série de combinações …..era assim que se vestia sempre.
Houve uma fase, na minha infância/adolescência, que  também eu ía para o Marco sem Mãe e Irmãs…ia ter com  as minhas primas e disfrutar… saltava às figueiras e comia figos, empoleirada no tronco. Apanhava pinhões, seguindo as suas indicações. Dava comida aos passarinhos e patos, tocava piano e cantava com a tia, com tão estimado primo Nuno e tão querida prima Kika, e via as criações de moda que a minha prima Joana engendrara nos últimos tempos. Correr no mato com elas e ir visitar ao final do dia a Tia ao Bacelo e fazer-lhe o relato de como tinha sido o frenesim do dia!

Ela era muita bonito em nova, encantadora e perfeita já com idade, e de braços abertos para os outros. Era isso a Tia Lolinha. Não mascarava a sua dádiva e era aquilo mesmo. Talvez nunca a tenha assistido a ralhar, ou zangada com algo…Sempre a sorrir como ELA era bela. Um sorriso sincero que vem de dentro, acho que não conheço nenhum sorriso assim. Um sorriso de paz. Aceitou a vida com sabedoria, mesmo nos momentos muito difíceis, que os teve, e os quais fui assistindo. Nunca lhe senti revolta. A fé dava-lhe muitíssima paz interior. E isso ainda não aprendi…

A minha tia era especial. Isto de facto tem algo de lugar comum …todos nós temos uma tia, um familiar qualquer, muito muito especial….mas aqui penso que aqueles que tiveram o privilégio de algum dia travar com ela, sabem do que falo. A minha tia era evoluída, e elevada. Não era seguramente uma pessoa comum. Ela uma Alma muito grande, extremamente branca. Não havia mácula. Um anjo que por onde passava deixava essa mesma marca. Todos, sem excepção, desde o ser mais racional ao mais emotivo, do mais motivado ao mais indiferente, se deixavam tocar pelo seu coração.

As duas últimas vezes que a visitei foram extremamente intensas. Já no lar, ao lado de um local que me transporta: a igreja do Marco de Canavezes.
A penúltima lembro-me que estava no Porto na minha vida normal, há uns três anos, e de repente tive uma enorme vontade de falar com a minha tia. Já não estava com ela há meses, e era sempre um surpresa o estado em que a veria, pois nestes anos últimos o tempo fazia-se ler no seu corpo, no seu rosto. Meti-me no carro e rapidamente cheguei ao Marco. A nossa conversa foi um monólogo, mas senti-lhe muita empatia no olhar. E chegou-me. Vim para o Porto com a sua luz, e com as lembranças de outrora.
Tinha uma memória gigante, até muito tarde inclusivamente desde o lar, ligava-me nos anos e dizia sempre que no dia a seguir o seu pai também faria anos, 18 de Abril, e se eu tivesse nascido um dia depois, faríamos exatamente 100 anos de diferença. Lembro-me todos os anos das mesmas palavras. Tinha também no seu quarto uma serie de imagens de Santos, com uma imensidade de fotografias de todos os tamanhos. Ali estávamos nós todos. E a sua salvaguarda da bênção divina para tão numerosa família.
A última vez que lá fui, lembro-me que a encontrei no refeitório e já sem grande fome, disse à funcionária que a sua comida era para os passarinhos.
Lembro-me de a abraçar muito.

Assim espero evoluir na minha vida, abraçada à sua energia e sabedoria, mas deixa-la ir também.
Não sei se a Tia Lolinha terá mais por onde evoluir. Sei que quando a visitava no lar ao lado da Igreja do Marco, invariavelmente visitava a Igreja depois.
E voltava a vê-la naquela luz que entrava pelo espaço, e que corrompia o negativo da cruz. Ela estava ali também. Naquela luz. Está e estará.